Meio Sol Amarelo (Chimamanda Ngozi)
PRIMEIRAS
IMPRESSÕES
Chimamanda Ngozi é uma engajada escritora nigeriana
reconhecida em diversos países. Eu a conheci quando se tornou curadora da TAG
em algum mês do ano passado. Em Meio sol amarelo, os anseios de um grupo étnico nigeriano (os Igbos) são postos em evidência com a crueza necessária para quem quer
contar a realidade. O terreno para isto é a ficção, que tanto pode tornar
lúdico demais um acontecimento atroz quanto, como é no caso desta obra,
fornecer uma plataforma inigualável para contar um fato concreto aos mais
diversos tipos de público.
O livro tem uma escrita muito envolvente e conseguiu fazer com que eu não achasse pontinho negativo que fosse. Procurei um furo de roteiro, uma lacuna, uma má colocaçãozinha só, somente um errinho para que esta resenha não fosse um elogio tedioso. Falhei miseravelmente.
SINOPSE
Meio sol amarelo é um romance histórico centrado no
contexto de guerra-civil da Nigéria em meados dos anos sessenta. Têm
protagonistas bem diferentes. A despeito de origens bem diversas, tais
personagens têm os seus caminhos entrecruzados. Olanna pode ser considerada a
mais importante. Ela vem de uma família riquíssima e acaba de voltar à Africa
junto à sua irmã gêmea não-idêntica, Kainene, após terem concluído a faculdade
na Inglaterra (Olanna, Sociologia; Kainene, administração; o que reflete e
muito na personalidade de ambas).
Olanna sente desprezo pelos hábitos aristocráticos da
família e decide largar o berço de ouro e a maioria dos seus privilégios. Passa
num concurso para lecionar na mesma faculdade que o seu namorado (um matemático
revolucionário interessantíssimo, Odenigbo, que tem livros esparramados pela
casa inteira) e parte para morar no Campus.
Temos outros, no entanto. Inclusive o livro começa de
Ugwu, um adolescente oriundo de uma aldeia do sul — um lugar tão pobre que
as pessoas de lá não crêem que existam pessoas que comam carne todos os dias —
e consegue arranjar um serviço de empregado na casa de Odenigbo, o qual ele,
ironicamente, chama de patrão. É esplendoroso o choque com que Ugwu reage ao
seu novo lar. A sua tia, que conseguiu o emprego, previne-o de algumas das
novas máquinas que ele não conhece (para que ele não passe uma impressão
negativa ao patrão). Tudo é novo, a geladeira, uma imensa máquina branca, cujo
vapor é gelado, é uma descoberta; é inaceitável a forma como as pessoas
descartam tudo neste mundo novo, por isso ele resgata vários desperdícios do
lixo e os esconde; a sala que é maior do que a sua antiga casa, com seus
enormes sofás em formato de meia-lua etc.
Além destes dois, outro protagonista é Richard. Um inglês
tímido, namorado de Kainene (irmã de Olanna), que tenta iniciar a sua carreira
como escritor sem saber sobre o que escrever em seu livro. Chegou à Nigéria por
intermédio de uma antiga namorada de lá, também inglesa, que o irritava pelos
preconceitos coloniais e pelos círculos sociais que o obrigava a frequentar,
cheio de homens de negócios e outros bambambãs que não tinham nada a ver com
ele.
Nas cenas de Richard, é possível notar vários exemplos de
resistência difusa, ou seja, aquela
resistência que não é à base de armas, mas, por exemplo, na língua, quando os
nativos se recusam a falar em suas próprias línguas, caçoando dele, calando-se,
para que o inglesinho (que quer muito aprender) não sugue ainda mais das suas
culturas.
A
Guerra de Secessão
O cenário do romance é a Nigéria do final dos anos 60, início dos 70, durante os conflitos que marcaram a resistência dos povos igbos com relação aos Hauças do norte da Nigéria. A nação nigeriana tinha três principais grupos éticos: os hauçás
(islâmicos); os iorubas e os igbos. Na metade final da década de 60, eclodiram violentos
conflitos político-econômicos cujo resultado foi uma guerra-civil étnica
sangrenta.
Os Igbos, que tinham representação em vários cargos e dominavam a burocracia do país, golpearam o Estado e tomaram controle total. No entanto, pouco após isto, os hauçás contra-golpearam e levaram a cabo um massacre contra os igbos (um povo republicano que nunca se deu bem com as formas de domínio impostas pelo colonialismo e neocolonialismo britânico). Tal massacre foi empreendido pelos hauçás — os igbos, quando descobertos, foram sumariamente executado.
Os Igbos, que tinham representação em vários cargos e dominavam a burocracia do país, golpearam o Estado e tomaram controle total. No entanto, pouco após isto, os hauçás contra-golpearam e levaram a cabo um massacre contra os igbos (um povo republicano que nunca se deu bem com as formas de domínio impostas pelo colonialismo e neocolonialismo britânico). Tal massacre foi empreendido pelos hauçás — os igbos, quando descobertos, foram sumariamente executado.
Em resistência ao massacre, o povo igbo fugiu em massa
para o sul do território nigeriano e proclamou a República de Biafra, cujo
símbolo é um meio sol amarelo estampado em um cordãozinho em cada um dos soldados
biafrenses.
O
choque
Esta seção é um alerta a quem for sensível demais: não
leia. Ou melhor, leia se quiser exercitar a sua capacidade de lidar com a
realidade, ainda mais com a realidade de um lugar que pouco tempo antes era uma
colônia, e que sofria (e sofre) com novas formas de dominação. Mortes nuas e
cruas; traições; dramas familiares; cenas engraçadas, comoventes, quase tudo,
menos idealizações mentirosas.
O
que ficou do que passou
Meio sol amarelo é um livro profundo: profundamente bem escrito, profundamente triste, profundamente intenso. Suas cenas mesclam passagens de extrema singeleza com outras de uma crueza dolorosa. Sejam quais forem, são necessárias para tornar a obra um clássico em potencial, que põe em pauta questões atemporais e verdades pouco ditas.
Chimamanda não pretende agradar por agradar. Trata-se de um choque de realidade, uma vez que coisas assim realmente aconteceram e acontecem. Um fio de resistência em meio a uma mídia hegemônica que trata mortes africanas como mera estatística e mortes francesas como desastres shakesperianos. Isso acontece, de maneiras diferentes, ainda hoje, em diversos países cuja população minoritária é grande. O que a obra mostra é a realidade de personagens que viveram num conflito cruel, o que, é possível, torna a experiência do livro dolorosa demais para alguns, mas preenche uma das maiores carências da nossa realidade educacional: a história da África.
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