Histórias
sobrenaturais de Rudyard Kipling é uma compilação de contos que se deslocam das
especialidades que consagraram Kipling. Este escritor, aparentemente, não é tão
famoso aqui no Brasil — de minha parte, não o conhecia, mas como eu não sou
todo mundo, pode ser que eu esteja enganado com relação ao seu reconhecimento.
Tornou-se célebre sobretudo na Inglaterra e na Índia por suas histórias
infanto-juvenis. O livro mostra outra faceta de sua extensa e rica produção
literária, num conjunto que apresenta suspense, comédia e mistérios, sempre
ligado pelo fio do sobrenatural.
Kipling
é filho de ingleses erradicados na Índia do século XIX, quando o imenso
território indiano era subjugado pelos britânicos, que não os permitiam aspirar
a mais do que a condição de colônia. Por isso, é perceptível que a esmagadora
maioria dos contos — escritos por um inglês — tem como cenário essa enorme e
diversificada massa de terra e de culturas. Invariavelmente, os protagonistas
são ingleses. Indianos, em condição de inferioridade, são depravados moralmente
ou aparecem sob uma silenciosa subalternidade. Nada de novo no front, afinal.
Sinopse
Escolhi
alguns contos para exemplificar o estilo do livro e do autor, uma vez que eles
seguem a mesma lógica que eu expliquei acima. Em O Jirinquixá Fantasma, conto divertidíssimo e um pouco
enlouquecedor, Kipling conta a história de Jack, funcionário inglês erradicado
na Índia, que, ainda em sua viagem para o país que vai trabalhar, conhece Mme.
Wessington, uma mulher casada. Os dois iniciam um caso extraconjugal. Logo ele
percebe que isso é um erro; ela concorda. No entanto, ele percebe que a paixão
dos dois é descompensada. A balança pesa mais para o lado dela e a história
está longe do ponto final. A partir do rompimento, a senhora inicia uma
perseguição implacável e sobrenatural a Jack, através do seu fantasmagórico
Jirinquixá.
O despacho de Dana Da nos
apresenta um ocultista que é contratado por um preço exorbitante para lançar
uma maldição a um inimigo do contratante. É aí que o tal inimigo, do outro lado
do mundo, começa a ser alvejado por inúmeros filhotes de gatinhos, que aparecem
em suas malas, em seu quarto, em suas gavetas, em sua cama. Por mais que ele dê
um fim às criaturas, elas sempre voltam. No leito de morte, cobrando mais uma
taxa, o sinistro despachante conta o seu segredo. Excelente sátira dos
trabalhos dos feiticeiros farsantes, que lucram desde aquela época com a
inocência dos desesperados.
Em
O signo da Besta, o policial Strickland — uma das suas personagens mais
conhecidas; aparece em vários contos e tem um jeito carismático — tem que
resolver o mistério de um amigo hospedado em sua casa que, após ser atacado por
um sacerdote lunático que se comunica aos miados, transforma-se numa criatura
violenta e estranha que não conserva nada do normal.
A edição
Fiz
a leitura da quarta edição, realizada pela Bertrand Brasil. Valiosíssima do
ponto de vista informativo. Antes de cada conto, um comentário de Peter Haining
que não deixa dúvida acerca das possíveis inspirações que o moveram e do
recebimento por parte do público à época. A fonte é igual à utilizada numa
edição recente de O amor nos tempos de Cólera; bom, não sei especificar qual o
tipo de letra, mas torna a leitura ainda mais prazerosa. A edição, portanto,
foi o ponto mais positivo da minha experiência com a obra.
O que ficou do que passou
Rudyard
Kipling mostrou ser um ótimo contador de histórias curtas. Todos os enredos
são, nos piores dos casos, medianos. A maioria dos contos é boa, embora alguns
embrulhem os estômagos pela rispidez e naturalidade com que os preconceitos da
época são reproduzidos; mas nem todos se encaixam nesse padrão. Assim como cada um
de nós, Kipling é um homem da sua época; mais do que isso, do seu meio:
aristocrático, colonizador e difusor de uma sociabilidade europeia. A despeito
disso, estritamente na qualidade de escritor, ele demonstrou ser cativante.
Suas
histórias, apesar do sobrenatural, têm muita verossimilhança (em alguns casos,
o autor expressa que a história realmente foi contada por algum amigo ou mesmo
presenciada por ele mesmo e repaginada com fantasmas) e provoca nos mais
crédulos a dúvida a respeito de se Kipling presenciou de fato tudo aquilo ou se
é, afinal, fruto de uma mente imaginativa.
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