RIO 2054: Os
filhos da Revolução (Jorge Lourenço)
Rio 2054: Os filhos da Revolução é o livro de
estréia, e único até agora, de Jorge Lourenço, jovem escritor e jornalista
carioca que já escreveu para O Globo, Uol e outros veículos de imprensa.
Lourenço ambienta o seu romance com propriedade, ostentando conhecimento de
quem mora a vida inteira na cidade fluminense.
O livro tem clara inclinação para a questão da segregação do espaço
urbano, que é tão facilmente perceptível nas grandes cidades. Observe nos dias
atuais, por exemplo, a diferença entre a Rocinha e Ipanema. A obra é prato
cheio para quem tem interesse em Geografia, História e Sociologia.
Antes de partir para sinopse em si, para o interior
dos e das protagonistas, vou explicar um pouquinho como é o universo de
Lourenço.
O mundo em 2054
A cidade do Rio de Janeiro está dividida entre
Rio Alga (ou as Luzes) e Rio Beta (ou os Escombros). A diferença entre as duas
é monumental. As Luzes são extraordinariamente ricas, enquanto os Escombros
compreendem uma área segregada cuja tecnologia não chega nem ao que temos hoje,
em 2018. Seus habitantes não podem
cruzar as fronteiras, que são guardadas vinte e quatro horas por dia. Utopia
para quem?
Na década de 20 (do século XXI), uma guerra civil
movida por grupos separatistas provocou essa situação. Tais grupos congregaram
as mais diversas correntes ideológicas contra a divisão injusta dos royalties
de petróleo da nova reserva de petróleo encontrada no Rio, a Pré-sal 2. A
divisão favorecia a iniciativa privada em detrimento do público, e as
autoridades, claro, não facilitaram para que o interesse coletivo superasse o
individual. A ONU, em conjunção com as classes dominantes, isolou
a área rebelde do Rio e a transformou em um complexo com o nome de Zona
Internacionalizada (ZI). A força militar liderada pela OTAN terminou o serviço
detonando uma bomba nuclear no centro da cidade, isolando-o das duas partes da
cidade.
Nos Escombros, as pessoas se alimentam com frutas
podres adquiridas em sua maioria na feira-livre da terça-feira, um espaço que vende os
restos das Luzes a preços acessíveis. A vida social da Rio Beta é recheada de
gangues, elemento retratado durante todo o livro. Já na parte nobre, a tecnologia se desenvolveu a tal ponto que os
robôs, — alguns deles, não todos — foram atingidos pela seciência (conceito do
próprio Jorge Lourenço), espécie de consciência existencial dos robôs, também
chamada de “Fantasma”.
Claro que o foco do livro é a distopia, um subgênero da ficção
científica. Mas o livro também trabalha com a fantasia. Existem alguns
indivíduos "especiais" neste mundo. As suas habilidades vão desde a
telecinésia até a previsão de um futuro próximo. Não há nenhuma explicação com
verossimilhança científica para isso, e esses indivíduos são perseguidos pelas
autoridades e são literalmente apagados da história. Mas não trate isso como
maldade, afinal, este livro não trabalha com lados bons e lados maus. O
governo e as empresa dão "as suas voltas" e conseguem legitimar todas
as suas ações.
Sinopse
Miguel é um jovem que ganha a vida vendendo
próteses. Esses aparelhos são retirados das carcaças dos soldados vitimados
pela guerra civil, que repousam no centro da cidade (sim, na área radioativa). Miguel descobriu, com a sua inseparável moto, uma passagem para o
centro, e nunca sofreu nenhuma sequela da radiação. Ele revende os produtos
adquiridos lá para o seu melhor amigo, Nicolas, que é médico diletante. Também
é lá que, em um sebo em ruínas, consegue manter seu vício de leitura, que não é
o mesmo vício da sua ex-namorada, Nina, que se afundou nas drogas com a
decepção de não conseguir uma forma de se mudar para as Luzes.
No ano de 2054, aparece uma personagem misteriosa.
Angra, uma moça misteriosa e carismática, começa a ganhar enorme poder de
influência. Chama a atenção o seu estilo cruel de derrubar adversários na
batalha de gangues, esporte mais famoso nos Escombros, cuja violência serve de
show televisivo para as Luzes. A grande problemática é que Angra usa as
batalhas como estratégia para algo maior. Ela é a mudança. Qual é o caminho que
Angra quer trilhar para os Escombros? O que significa a ascensão meteórica dela
e de sua gangue?
É aí que entra em cena o Comandante, maior mafioso
do Rio Beta. Curioso com a ascensão de Angra e tendo como pressuposto de que
ela pode ser nociva para a sociedade, ele reúne o melhor motoqueiro de cada
gangue para derrotar a Éden, gangue que ela lidera. Miguel, por ser amigo de
infância de Anderson, líder uma grande gangue, também é convidado para o
ambicioso projeto do Comandante. Só aceita porque ele encontrou Alice, robô com
um “fantasma” acentuadíssimo que está prestes a descarregar; sua bateria é
caríssima e ele, com as poucas palavras que trocaram, se encantou com a vontade
que ela tem de descobrir mais sobre si mesma e sobre a vida. A única maneira de
conseguir a grana para pagar a bateria é participando do crime, coisa que ele
sempre teve repulsa.
O próximo subtítulo contém um pequeno spoiler (não
muito grande), então, basta pular para as considerações finais (o que ficou do que passou) caso você ainda
não tenha feito a leitura da obra.
Uma análise
Fiquei encabulado com uma cena em que
o Comandante (um homem misterioso que aparece sob disfarces de Che Guevara,
Fidel Castro, Lênin e outras personalidades socialistas) discute com o Miguel
e, aparentemente, o convence de que os ideais revolucionários de Angra não são
tão legais assim. O cara, com um
discursinho que romantiza a pobreza, defende com unhas-e-dentes que a vida nos
Escombros é mais legal do que nas Luzes, fazendo uso de argumentos como o de
que, nas Luzes, as pessoas estão aprisionadas às redes sociais e à vida fútil e
consumista da classe média.
Ora, se isto for verdade, então beleza, vamos viver
em áreas com esgoto a céu aberto, fazendo voto de pobreza, participando de
forças contrarrevolucionárias só porque sim, é a única maneira de barrar a
nefasta revolução que livraria pessoas miseráveis de suas vidas famintas e
pouco saudáveis. Estou com o Miguel nessa discussão! Embora em mim tenha ficado
uma impressão de que a última palavra foi do Comandante, que ele talvez tenha
“vencido” o debate com seus argumentos ridículos.
A verdade é que, querendo ou não, Angra é a síntese
da libertação daquele povo dos Escombros, da inconformidade com as situações de
vida impostas pelo capitalismo a esse povo. Aliás, para falar a verdade, Angra
nem é revolucionária: ela só quer que o povo tenha acesso aos confortos e
consumos de fora daquela miséria absoluta na qual ela e seus conterrâneos
vivem. Mas que o Comandante, o suposto socialista, é contrarrevolucionário, ah,
não tenha dúvidas!...
O que ficou do
que passou
O livro é um primor. Fiquei bem irritado com
algumas personagens de grande evidência positiva na trama. Se o livro fosse
meu, o Comandante, por exemplo, não circularia pelos protagonistas. Seria
apenas um contrarrevolucinário que se utiliza oportunamente de símbolos
socialistas. Apenas um rico filantropo, como Bill Gates. Mas a verdade é que o
livro não tem muito de maniqueísta, a questão de bem e mau, o que me deixa
bastante contente. Livros assim nos fazem refletir muito mais, e a interpretação de cada pessoa diz muito sobre o que ela acredita.
A abordagem de Jorge Lourenço não deixa a desejar na questão da luta de classes. A desigualdade social está presente em todas as páginas, e o tratamento não é simplista: existem dois pólos, as Luzes e os Escombros, porém, há complexidades. Até nas Luzes há diferenciação social, uma vez que a maior parte da população de lá é formada por classes médias, e uma pequena parte vem da elite. Nos Escombros também há os que conseguem, por exemplo, comprar frutas e verduras em qualquer dia da semana, e não só nas terças-feiras como quase todo mundo.
A abordagem de Jorge Lourenço não deixa a desejar na questão da luta de classes. A desigualdade social está presente em todas as páginas, e o tratamento não é simplista: existem dois pólos, as Luzes e os Escombros, porém, há complexidades. Até nas Luzes há diferenciação social, uma vez que a maior parte da população de lá é formada por classes médias, e uma pequena parte vem da elite. Nos Escombros também há os que conseguem, por exemplo, comprar frutas e verduras em qualquer dia da semana, e não só nas terças-feiras como quase todo mundo.
Outro grande mérito de Jorge Lourenço é a fluidez
da sua linguagem. Minha vontade é a de ficar horas e horas lendo o seu livro,
mesmo se eu tiver outras obrigações. A pena é que eu não achei outras obras dele em minha pesquisa e pode ser que esta seja o seu único romance até hoje. Espero, portanto, que eu esteja bem enganado. No entanto, como se vê na imagem ao lado, ele é bem jovem e pode ainda nos presentear com outras obras no futuro.
Recomendo
muito: leia Rio 2054, Os filhos da Revolução. Se não gostarem, a
responsabilidade é minha.
Oie amore,
ResponderExcluirNão conhecia o livro, mas gostei do pouco que vi por aqui... é uma distopia bem verdadeira afinal o autor tem conhecimento de causa, acho que vou gostar de ler num outro momento.
Dica anotada por aqui!
Beijokas!
www.facesdeumacapa.com.br