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domingo, 13 de maio de 2018

Nós (Yevgeny Zamyantin)


“As crianças são os únicos filósofos ousados. E os filósofos ousados são necessariamente todos crianças” (Yevgeny Zamiatine)

Admirável mundo novo, Revolução dos bichos e, especialmente, 1984, foram algumas das “besteirinhas” que herdaram o legado da obra-prima de Zamieatine, o futurístico romance Nós. Em 1924, Yevgeny Zamiatin conclui o livro que, apesar de relativamente desconhecido, é basilar para a ficção do século XX. Ainda que escrito originalmente em russo, a obra é publicada pela primeira vez em inglês; na língua russa, só aparece na década de 50, e não na União Soviética, mas sim na mesma Londres. Somente quando a URSS se extinguiu, em 1991, que a terra de origem do livro obteve a sua primeira edição.

Numa prosa rápida e confusa, devido, também, ao estado de confusão mental do protagonista que é o narrador-personagem, Nós surge como expressão de alguns receios que já pairavam sobre os indivíduos do século XX: o medo do totalitarismo a nível global, de um Estado onipresente e onisciente, de uma sociedade cada vez mais mecanizada devido à importância incontestável da produtividade. 

Sinopse
A sociedade do protagonista do livro, no século XXX, elevou a produção ao nível mais extremo possível, um aspecto que paira sobre todos os âmbitos da vida dos indivíduos. Aliás, eles nem ao menos conhecem bem o conceito de “pessoa”, de “homem” ou de “mulher”. Todos são números. O protagonista é um número macho, chamado D-503, matemático e grande construtor de uma máquina que vai possibilitar o transporte de grandes massas de números rumo a outros planetas. O Estado Único é o organismo estatal aclamado com unanimidade. Seu domínio ideológico é tão bem sucedido que, no Dia da Unanimidade (suas eleições), o Grande Líder é eleito sem votos contrários.

A vida social, profissional e pessoal de D-503, assim como a de todos, é matematicamente prevista nos mínimos detalhes. Nos momentos de descanso, os números andam em grupos de quatro pessoas que marcham no mesmo ritmo. Quando querem ter relações sexuais, como o contato social é praticamente desnecessário e atrapalha a produtividade, basta que troquem entre si papeis rosas com endereço e horário, e pronto, caso haja consentimento, tudo está combinado.  Não há o relacionamento a dois, aliás, o triângulo amoroso, por sua conotação geométrica, é uma das formas mais perfeitas de comportamento social.

Entretanto, os dias perfeitos e “lúcidos” de D-503 são abalados quando a número fêmea E-330 — personagem cujo rosto é marcantemente descrita pelo narrador-personagem como tendo formato de “X” — aparece na vida de D-503, com seu jeito extremamente subversivo, cai por terra todo o mundo feliz e cronometrado e perfeitamente alinhado. Ele começa, por exemplo, a pensar muito nela, e somente nela, a devanear e sonhar de noite, o que nesta sociedade é um “grave distúrbio psíquico”. Como conflitos internos são absolutamente anormais neste mundo, D-503 entra em estado de profunda confusão mental e começa a questionar alguns pontos da sua vida.
Concepção de história
Como estudante de história que sou, achei muito interessante a forma como Zamiatine explana a compreensão do tempo desta sociedade. Antes, vamos dar uma viajada por outros jeitos de entendê-lo. Sabemos que cada sociedade compreende o tempo de uma forma. Atualmente, nós, ocidentais, o abrangemos como se fosse uma linha-do-tempo que se inicia com o nascimento de cristo, influenciados pela tradição cristã, portanto, em uma concepção linear.

Já na sociedade retratada em Nós, há uma concepção cíclica de história, segundo a qual tudo sai do zero e volta para o zero. Imagine um círculo geométrico. É como se a história deles fosse um ângulo de 360º.  Ela não exclui fenômenos novos, no entanto, em suma, a sociedade se concentra no Estado Único e, mesmo que hajam fenômenos que o perturbe ou que o fortaleça, tudo sai deste e volta para este organismo.

O que ficou do que passou: Liberdade ou felicidade?

Digamos que este livro não é capaz de fazer alguém se apaixonar pela leitura. A história, aí sim, é uma das mais fascinantes que já li; a forma como ela é escrita é que não é tão agradável. O autor percorre uma estrada cheia de fluxo de consciência; todos os parágrafos são um mistério, não se tem ideia alguma de como eles vão fluir. A sequência lógica da narrativa se prejudica bastante. Em algumas obras isso é bem interessante - não em Nós.

Só que, assim como os outros clássicos da ficção científica do século XX, a história deixa profundas reflexões sobre a sociedade de quem a escreve. Óbvio que, assim como todos, Zamiatine é um homem do seu tempo. Por isso, imaginou um futuro como decorrência do perigo totalitário dos Estados de sua época. Mas um domínio totalitário não é necessariamente garantido por repressão. É necessário que a sociedade consinta de alguma maneira. Não pode haver poder sem consentimento. É para isso que as classes dominantes desenvolvem mecanismos ideológicos, ou seja, algumas práticas, ideias e juízos de valores que vão criar uma relação de cumplicidade entre o dominador e o dominado. E Zamiatine talvez tenha inaugurado a ideia do domínio pela felicidade, tão bem desenvolvida em Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley. Se as pessoas forem felizes, talvez elas não reivindiquem a liberdade. A liberdade pode ser mais crua, conflituosa e instável do que a cômoda felicidade.

E você, prefere a felicidade sem liberdade ou a liberdade sem felicidade? 

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