“As crianças são os únicos filósofos
ousados. E os filósofos ousados são necessariamente todos crianças” (Yevgeny
Zamiatine)
Admirável mundo novo, Revolução dos bichos e, especialmente, 1984, foram algumas das “besteirinhas” que
herdaram o legado da obra-prima de Zamieatine, o futurístico romance Nós. Em 1924, Yevgeny Zamiatin conclui o
livro que, apesar de relativamente desconhecido, é basilar para a ficção do
século XX. Ainda que escrito originalmente em russo, a obra é publicada pela
primeira vez em inglês; na língua russa, só aparece na década de 50, e não na
União Soviética, mas sim na mesma Londres. Somente quando a URSS se extinguiu,
em 1991, que a terra de origem do livro obteve a sua primeira edição.
Numa
prosa rápida e confusa, devido, também, ao estado de confusão mental do
protagonista que é o narrador-personagem, Nós
surge como expressão de alguns receios que já pairavam sobre os indivíduos do
século XX: o medo do totalitarismo a nível global, de um Estado onipresente e
onisciente, de uma sociedade cada vez mais mecanizada devido à importância
incontestável da produtividade.
Sinopse
A
sociedade do protagonista do livro, no século XXX, elevou a produção ao nível
mais extremo possível, um aspecto que paira sobre todos os âmbitos da vida dos
indivíduos. Aliás, eles nem ao menos conhecem bem o conceito de “pessoa”, de “homem”
ou de “mulher”. Todos são números. O protagonista é um número macho, chamado
D-503, matemático e grande construtor de uma máquina que vai possibilitar o
transporte de grandes massas de números rumo a outros planetas. O Estado Único
é o organismo estatal aclamado com unanimidade. Seu domínio ideológico é tão
bem sucedido que, no Dia da Unanimidade (suas eleições), o Grande Líder é eleito
sem votos contrários.
A vida
social, profissional e pessoal de D-503, assim como a de todos, é
matematicamente prevista nos mínimos detalhes. Nos momentos de descanso, os
números andam em grupos de quatro pessoas que marcham no mesmo ritmo. Quando querem
ter relações sexuais, como o contato social é praticamente desnecessário e
atrapalha a produtividade, basta que troquem entre si papeis rosas com endereço
e horário, e pronto, caso haja consentimento, tudo está combinado. Não há o relacionamento a dois, aliás, o
triângulo amoroso, por sua conotação geométrica, é uma das formas mais
perfeitas de comportamento social.
Entretanto,
os dias perfeitos e “lúcidos” de D-503 são abalados quando a número fêmea E-330
— personagem cujo rosto é marcantemente descrita pelo narrador-personagem como
tendo formato de “X” — aparece na vida de D-503, com seu jeito extremamente subversivo,
cai por terra todo o mundo feliz e cronometrado e perfeitamente alinhado. Ele
começa, por exemplo, a pensar muito nela, e somente nela, a devanear e sonhar
de noite, o que nesta sociedade é um “grave distúrbio psíquico”. Como conflitos
internos são absolutamente anormais neste mundo, D-503 entra em estado de
profunda confusão mental e começa a questionar alguns pontos da sua vida.
Concepção
de história
Como
estudante de história que sou, achei muito interessante a forma como Zamiatine
explana a compreensão do tempo desta sociedade. Antes, vamos dar uma viajada
por outros jeitos de entendê-lo. Sabemos que cada sociedade compreende o tempo
de uma forma. Atualmente, nós, ocidentais, o abrangemos como se fosse uma
linha-do-tempo que se inicia com o nascimento de cristo, influenciados pela
tradição cristã, portanto, em uma concepção linear.
Já na
sociedade retratada em Nós, há uma
concepção cíclica de história, segundo a qual tudo sai do zero e volta para o
zero. Imagine um círculo geométrico. É como se a história deles fosse um ângulo
de 360º. Ela não exclui fenômenos novos,
no entanto, em suma, a sociedade se concentra no Estado Único e, mesmo que
hajam fenômenos que o perturbe ou que o fortaleça, tudo sai deste e volta para
este organismo.
O que ficou do que passou: Liberdade ou
felicidade?
Digamos que este livro não é capaz de
fazer alguém se apaixonar pela leitura. A história, aí sim, é uma das mais fascinantes que já li; a forma como ela é
escrita é que não é tão agradável. O autor percorre uma estrada cheia de fluxo de
consciência; todos os parágrafos são um mistério, não se tem ideia alguma de
como eles vão fluir. A sequência lógica da narrativa se prejudica bastante. Em
algumas obras isso é bem interessante - não em Nós.
Só que,
assim como os outros clássicos da ficção científica do século XX, a história
deixa profundas reflexões sobre a sociedade de quem a escreve. Óbvio que,
assim como todos, Zamiatine é um homem do seu tempo. Por isso, imaginou um
futuro como decorrência do perigo totalitário dos Estados de sua época. Mas um
domínio totalitário não é necessariamente garantido por repressão. É necessário
que a sociedade consinta de alguma maneira. Não pode haver poder sem
consentimento. É para isso que as classes dominantes desenvolvem mecanismos ideológicos,
ou seja, algumas práticas, ideias e juízos de valores que vão criar uma relação
de cumplicidade entre o dominador e o dominado. E Zamiatine talvez tenha
inaugurado a ideia do domínio pela
felicidade, tão bem desenvolvida em Admirável
Mundo Novo, de Aldous Huxley. Se as pessoas forem felizes, talvez elas não
reivindiquem a liberdade. A liberdade pode ser mais crua, conflituosa e
instável do que a cômoda felicidade.
E você,
prefere a felicidade sem liberdade ou a liberdade sem felicidade?
Liberdade! Liberdade acima de tudo!
ResponderExcluir<3 Eu tbm. Somos iluministas, somos da modernidade
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